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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

lasciate ogne speranza, voi ch'entrate

andava numa tentativa de ser prendada nas tarefas domésticas. a ideia de fazer uma máquina de roupa e tingir tudo, de fazer um prato para dez amigos e pôr tudo a tossir de extra-extra-sal ou de aspirar uma sala à moda dos sete anões - tudo para baixo do tapete - tiravam-lhe o sono. 

passado muito tempo, tempo a mais, decidiu que era altura de pôr um pé fora do pesadelo e ver se estava frio. começou, dia após dia, a testar-se. num dia aspirou a casa toda e ficou radiante por perceber que só (!) tinha demorado quatro horas. mas estava um brinco e o ótimo é inimigo do bom, tentava convencer-se. no outro dia, arriscou um risotto de cogumelos com espargos e salsa. no dia seguinte, fez uma sopa e uma máquina de roupa. branca, que a preta teria que esperar. e depois lançou-se em lombos de salmão com mostarda e pimenta preta, embrulhados em papel de prata no forno e acompanhados com arroz de grelos. sentia-se radiante nestes primeiros passos, mas desvalorizava tudo o que fossem elogios da parte dele. porque apesar de todos os dias serem diferentes, havia uma coisa que se mantinha: fazia tudo com ar de quem não está a adorar aquilo, de quem até preferia estar num qualquer outro sítio. tinha alergia só de pensar que ele descobriria que ela até gostava daquilo, que não fazia por frete e que as tarefas domésticas chegavam mesmo a ser uma das melhores formas de descompressão de um dia de trabalho. começava a cortar as cebolas e as lágrimas faziam-na deixar para trás as várias reuniões. continuava para dedicar atenção ao arroz e a chuva que tinha apanhado até ao metro ficava esquecida. as ideias voavam para outro patamar e perdia-se na organização minuciosa dos detalhes realmente importantes a guardar ao final de cada dia.

mas os 24 dela para os 30 dele faziam com que não houvesse nada, mas nada, que ele não conseguisse decifrar. e hoje, quando chegou a casa dele e disse que pronto-está-bem-eu-faço-o-jantar-para-vocês-os-três, tinha a cebola cortada, os camarões descascados e o alho pronto. olhou para todo o aparato e riu-se. os 30 dele já há muito tinham percebido que os 24 dela estavam a adorar tudo o que fossem as coisas de casa.

2 comentários:

Anónimo disse...

E que fique registado que o rissoto de espargos e cogumelos estava muito bom!MH

Ana disse...

Querida! E estava cheio de pimenta, o que para os teus 4 bebés deve ter sido potentíssimo :) beijo grande com saudades, mAna